Um piquenique na casa de pássaros

“Os poemas são pássaros que chegam
não se sabe de onde e pousam
no livro que lês.” – Mario Quintana.

Era tarde da noite, eu estava preparando algumas torradas para o piquenique do dia seguinte feitos com pão integral, queijo, requeijão, milho e orégano. Alguns minutinhos na torradeira e estavam prontas. Provei a roupa que eu iria usar e a deixei separada em cima da cadeira no canto do meu quarto. O despertador tocou no outro dia às 6:45, e eu levantei, especialmente, animado. Vesti minha calça jeans, minha camisa vermelha florida e meu tênis marrom ao som de Perfect Illusion – nova música da cantora pop Lady Gaga. Escovei meus dentes, peguei minha câmera, minha Fjällräven Kånken – mochila de origem sueca, muito usada nos países nórdicos -, as torradas que havia feito na noite anterior e alguns guardanapos. Os primeiros períodos de aula passaram rápido no subsolo 2 do prédio C, e logo subimos ao térreo, onde encontramos a nossa professora que nos conduziria a um passeio. Ela vestia roupas em tons de laranja e marrom, carregava consigo uma típica cestinha de piquenique, toda de palha, forrada com uma toalha xadrez branca e vermelha, assim como as personagens de histórias infantis. Sua semelhança com a Chapeuzinho Vermelho talvez não fosse mera coincidência naquele dia.

Tivemos que esperar alguns minutos até o transporte vir nos buscar. Nesse meio tempo, tirei a minha câmera da mochila e comecei a fotografar os colegas, que, ao me virem segurando a câmera, começaram a posar e fazer caretas para as fotos. Todos estavam morrendo de fome, mas esperamos, pois faríamos um piquenique depois de visitar a exposição “Navalha Breve”, na Casa de Cultura Mario Quintana. Também conhecida como CCMQ, a Casa de Cultura é um centro cultural público, localizado no centro histórico da capital gaúcha, formado por dois prédios que são interligados por grandes passarelas. Este prédio foi construído em 1916, originalmente como Hotel Magestic e foi considerado muito ousado para a época, pois era inédito ter passarelas suspensas sobre uma via pública. Nas décadas de 1930 até 1950, o Hotel Magestic chegou ao seu auge, e nesse período hospedou grandes nomes da política e do mundo artístico, entre seus hóspedes, estiveram Getúlio Vargas e Jango Goulart, ex-presidentes da República.

Em 1990, o hotel de luxo deixa seu legado para se tornar um grande centro cultural, o qual hoje se denomina Casa de Cultura Mario Quintana para homenagear um dos maiores poetas brasileiros, o gaúcho Mario Quintana, que viveu no Hotel entre os anos de 1968 a 1982, no apartamento 217. Poeta, tradutor e jornalista, Mario era natural de Alegrete, mas, desde muito jovem, mudou-se para Porto Alegre, onde estudou e trabalhou por muito tempo. Solitário, viveu grande parte da sua vida em hotéis. Não se casou e nem teve filhos. Morreu aos 87 anos, deixando um enorme legado literário que continuará a inspirar gerações. A casa de cultura que foi batizada com seu nome, hoje é dedicada ao cinema, música, artes visuais, dança, teatro, literatura, e à realização de oficinas e eventos ligados à cultura.

Eram dez horas em ponto quando o ônibus chegou para nos levar até a Casa de Cultura. Todos pegaram suas coisas e foram animados em direção à saída da universidade. Embarcamos no ônibus onde sentamos todos próximos para conversar. Dava para ver a animação no rosto de cada um, como se fôssemos crianças saindo para uma excursão a um parque de diversões. A professora instigou-nos a falar sobre nossos lanches, e como havíamos preparado. Todos descreveram seus lanches, inclusive eu. “Torradas com traços indígenas!”, comentou a professora, e todos caíram na gargalhada. Ao chegar, desembarcamos e atravessamos a rua em direção à Casa de Cultura. Parecíamos turistas. Todos vestidos a caráter, com roupas leves de primavera, montados no look piquenique cultural do dia. O clima favoreceu, a temperatura estava perto dos 20 ºC, e o céu estava todo ensolarado e com poucas nuvens. Quando chegamos ao térreo, chamamos o elevador, que não conseguiu comportar os 11 estudantes e a professora. Foi necessário nos dividir em dois grupos para chegar até o quinto andar, onde a sala da exposição estava localizada.

Já no quinto andar, encontramo-nos com a curadora da exposição, que nos conduziu até a pequena sala. Depois de se apresentar e introduzir as obras e o autor, ela nos deixou entrar. Escura, com luzes vermelhas e rosas, e uma parede branca cheia de frases impactantes do autor ao fundo que se destacava em meio às outras paredes de tom escuro. Assim era a pequena sala. Desconfortante é o melhor adjetivo que encontro para descrevê-la. As obras ficavam penduradas como se estivessem em varais de um lado da sala, enquanto, do outro lado, as obras estavam em molduras, acrescentando uma importância maior a estas últimas. As obras eram recortes e colagens de jornais dos anos de 1950 e 1960, que, juntos, formavam um conjunto de imagens e frases impactantes. A exposição recebeu este nome, pois todo o processo de criação, recorte, colagem e construção de narrativa foi feito manualmente. As obras realizadas por Pedro Diaz Mattos causaram desconforto em toda a turma. A combinação das frases e imagens, juntamente com as luzes do ambiente e as características do local, causaram um sentimento profundo de descontentamento e indignação que fez com que fosse impossível sair daquela sala da mesma forma como entramos. Todos ficaram em silêncio, reflexivos e impactados.

Ao sair da sala, a curadora da exposição, Verônica Vaz, revelou-nos que tudo havia sido pensado e combinado entre ela e Pedro. “O objetivo da exposição é mesmo criar um desconforto.”, afirmou a curadora. Cada cartaz havia sido cuidadosamente pensado onde seria inserido, para assim criar uma espécie de narrativa. As cores vermelho e rosa da sala também não estavam ali aleatoriamente. Estas foram escolhidas devido aos sentimentos agregados às suas tonalidades. O vermelho representando o proibido, a atenção, o perigo e o estado de alerta, enquanto o rosa, trazia um ar de sedução ao ambiente, como se todos os visitantes fossem seduzidos pelo proibido ao entrar na sala e observar os cartazes da exposição. É incrível como os cartazes conseguem causar tanto estranhamento e revolta, pois, mesmo sendo feitos com materiais datados há 50 anos, ainda questionam e criticam temas da nossa realidade atual. Após esclarecer todas as nossas dúvidas, Verônica se ofereceu para nos mostrar as outras exposições da Casa de Cultura, então, descemos até o terceiro andar pelas escadas e fomos até uma enorme área em “T” de paredes brancas e quadros muito coloridos.

A exposição “Utopia e Náusea / Náusea e Utopia”, de Umbelina Barreto e Flávio Morsch, é caracterizada por quadros de cores muito fortes e vibrantes, juntamente com formas geométricas e simetria. O ambiente é agradável, as cores e formas dos quadros transmitem tranquilidade e alegria, tanto que a turma, ao entrar no espaço, se alegra, e alguns posam ao lado dos quadros, para que eu os fotografasse. Essa energia positiva e colorida contrastou com a tensão causada pela exposição anterior e, por um momento, podemos nos aliviar dos pensamentos de revolta e indignação. Fomos levados a um mundo de imaginação e inspiração. Não permanecemos muito tempo ali. Observamos as obras com um passar rápido de olhos e não paramos muito para refletir o quê cada obra representava; para nós, esta era apenas uma exposição de cunho estético, por isso não nos esforçamos em decifrar o significado de cada quadro da exposição. A fome também foi um dos quesitos que nos fez deixar a sala desta exposição rapidamente. Todos haviam trazido seus lanches em suas mochilas, porém ninguém havia se alimentado desde o café da manhã. Nossos estômagos roncavam. Era o momento perfeito para um piquenique.

Eu e  meu colega ficamos tirando fotos divertidas na exposição enquanto os outros desceram para o segundo andar pela escada e arrumaram tudo para o piquenique. Quando nós dois descemos para o segundo andar, tudo estava pronto. A toalha xadrez estava esticada sobre o chão de uma das passarelas que interliga os dois prédios da Casa de Cultura e, sobre ela, toda a turma estava sentada organizando seus pratos. Parecia o cenário de um filme. Tirei as torradas da minha Fjällräven Kånken e as coloquei em cima da toalha. Antes de me sentar junto aos colegas, tirei várias fotos da linda toalha de piquenique debaixo de frutas, sucos, bolos, torradas e sanduíches que cada um havia trazido. Todos estavam bem humorados e muito alegres pelo fato de estarmos fazendo algo que não é normal em nosso dia a dia, algo tão adorável e divertido, mas que geralmente não tiramos um tempo para fazer. Todos os comes e bebes estavam maravilhosos. O bolo do Paulo – também conhecido como “Bonner” pela turma, devido à sua voz e desenvoltura de apresentador de televisão – fez muito sucesso. Todos comeram e repetiram. Quando terminamos de comer e recolher os papéis e embalagens, tiramos uma foto de toda a turma. Posicionei a câmera em cima da cestinha de palha da professora, programei-a e sai em disparada para aparecer na foto.

Já passava do meio-dia, e precisávamos descer e ir para a frente da CCMQ, pois lá, o ônibus nos esperava para retornar à faculdade. Já sentado no ônibus a caminho da ESPM-Sul, pensei o quão legal essa experiência havia sido. Neste dia, eu aprendi muito mais do que versos de poemas e sobre quadros de exposições. Eu aprendi o valor de estar com pessoas que se gosta, num lugar agradável, fazendo coisas divertidas e aproveitando os bons momentos. Assim como dizia Mário Quintana, eu aprendi, nesse dia, que “a amizade é um amor que nunca morre.” – assim como as memórias que eu tenho dessa experiência maravilhosa. Eu me senti vivo, eu me senti importante, eu me senti adorado. Isso é o que você sente quando está com pessoas que realmente dão sentido à vida, num lugar onde tudo é poesia, onde cada poema é um pássaro.

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Eu, minha bicicleta e um castelo.

Era domingo, eu havia acabado de acordar e estava na mesa da sala tomando o meu café da manhã. Leite, iogurte, aveia, pão preto e chocolate eram o que tinha sobre a mesa, um típico café da manhã dinamarquês de final de semana. Minha mãe hospedeira se aproximou, sentou ao meu lado com a listinha de lugares que eu e ela fizemos juntos dos lugares para eu visitar antes de meu intercâmbio acabar e, infelizmente, eu ter que voltar para o Brasil. Ela me disse que a família toda iria estar ocupada com outras tarefas durante o dia, e que desta vez eu deveria explorar a cidade sozinho. O castelo Rosenborg e o Jardim Botânico eram os meus destinos escolhidos, pois são próximos e, assim, daria tempo para visitá-los sem pressa. Levantei-me e fui me arrumar. Peguei a câmera, que eu já havia deixado pronta em cima da escrivaninha do meu quarto, a chave da minha bicicleta, e despedi-me dos meus pais que trabalhavam no escritório.

Fui até o bicicletário pegar minha bicicleta. Toda preta e montada com peças de outras bicicletas. Seu banco era duro, às vezes, desconfortável, mas ela era minha companheira fiel no ano em que morei em Copenhagen, uma cidade feita especialmente para ciclistas. Destravei-a, subi, e comecei a pedalar. São 7 quilômetros de Vanløse até o centro de Copenhagen. Coloquei meus fones de ouvido e a minha playlist dinamarquesa para tocar no Spotify. Era um dia quente de verão, coisa não muito comum nos países do norte do hemisfério norte. Fazia 25ºC e ao pedalar ao sol, um vento fresco batia no rosto. Eu podia sentir o ar puro passar pelos meus pulmões. Fiz o mesmo trajeto que eu normalmente fazia para ir para a escola, a paisagem já me era familiar, os antigos prédios, os grandes parques arborizados, as ciclovias cheias e as estradas vazias, trilhos do trem, pessoas caminhando tranquilamente pela cidade, tudo. Eu já estava acostumado. Eu já era – ou pelo menos me sentia – oficialmente um dinamarquês, depois de 10 meses no país dos vikings.

Depois de 25 minutos pedalando, eu chego ao castelo Rosenborg. Este foi construído, em 1606, quando o rei Christian IV governava. A família real residiu ali até aproximadamente 1710, mas, atualmente, os atuais membros residem em vários palácios distribuídos por Copenhagen, principalmente no palácio de Amalienborg. Hoje, Rosenborg é um museu, e em seu interior abriga todas as joias da coroa dinamarquesa. As três coroas, o cetro que simboliza a autoridade suprema, uma esfera, uma ampola, e a espada do Rei Cristiano III de 1551, entre muitos outros itens valiosos, preciosos e importantes historicamente para a história do Reino da Dinamarca, estão expostos ali. Desci da minha bicicleta, coloquei-a em um bicicletário e travei-a. Caminhei até o castelo. O jardim real que é aberto ao público, conhecido como Konges Have, estava cheio neste dia. Os dinamarqueses estavam aproveitando o dia ensolarado para beber com os amigos e praticar esportes ao ar livre. Eu aproveitei para tirar algumas fotos do parque, que estava incrivelmente lindo. Deitei-me sozinho na grama, fechei os meus olhos e continuei ouvindo a minha playlist e pensando em tudo o que eu vivera nos últimos meses.

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Eu não vi o tempo passar. O clima estava tão maravilhoso naquele dia: nem frio, nem calor, algo bem raro nos países nórdicos. Havia se passado quase uma hora desde que me deitei na grama. Levantei-me e fui até o castelo. A entrada é gratuita para estudantes, então, eu pude entrar direto e ir para as salas onde as joias e pertences da família real estavam expostos no primeiro andar. Eu nunca vi, em toda a minha vida, tanto ouro, prata e diamantes em um só lugar. Era impossível calcular quantos mil ou milhões de reais há dentro daquele castelo. É incrível pensar que aqueles itens são tão antigos, e como foram feitos tão perfeitos sem o uso das tecnologias da atualidade. Ao mesmo tempo era indignante ver quilos de ouro e diamantes trancados em caixas de vidro dentro de um castelo abandonado e saber que 2,2 bilhões de pessoas vivem em situação de pobreza no mundo. Neste caso, a importância histórica fala mais alto, e seria uma enorme perda para a história da humanidade caso estes tesouros fossem doados ou vendidos.

Após tirar várias fotos no primeiro andar do castelo, me dirigi ao segundo e terceiro andar, que continham as acomodações reais, perfeitamente como era quando a família real residia ali. Muito luxo e ostentação por todos os lados. Cada cômodo havia objetos de ouro ou prata presentes na decoração. As paredes e o teto eram uma obra de arte só. Pinturas incríveis cheias de pequenos detalhes e bem preservadas decoravam todas as salas do castelo. Paro em frente a uma janela no terceiro andar e, lá de cima, é possível observar as pessoas se divertindo no parque e alguns cisnes nadando no pequeno lago que rodeava o castelo. Eu me senti em um dos cenários de Game Of Thrones, embora eu não soubesse disso naquele momento. Parecia que eu realmente estava em um filme medieval ali dentro. Depois de ver e rever todas as salas, decido pegar minha bicicleta, ir até o final da rua e visitar o Jardim Botânico.

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Mais uma enorme área verde no centro da grande cidade. Assim como no jardim real, ali as pessoas estavam sentadas na grama, conversando, compartilhando lanches, bebendo, divertindo-se, literalmente, aproveitando o sol, já que o inverno é longo, frio e escuro. Durante o período do verão as pessoas aproveitam o quanto podem o sol, as temperaturas agradáveis e a oportunidade de ficar ao ar livre e em contato com a natureza. Ao caminhar pelo Jardim Botânico, sinto muitos aromas agradáveis. Doces, leves, fortes, intensos, exóticos. Todas as cores se faziam presentes em alguma flor ou outra. No centro do jardim, uma enorme estufa com estrutura de vidro. Ao me aproximar, vi que estava fechado e o acesso não estava permitido naquele dia, no entanto, eu aproveitei muito o meu tempo do lado de fora. Um sentimento precoce de nostalgia me tomou por inteiro. Saudades de algo que eu ainda estou vivenciando. Um sentimento que não consigo compreender nem controlar. Pego minha bicicleta com os olhos cheios de lágrimas. Baixo a cabeça e começo a pedalar de volta à Vanløse. Eu tinha um mês, antes que a minha aventura no país dos vikings acabasse, muitos lugares ainda seriam vistos, muitos laços criados, muitas despedidas, muitos risos e muitas lágrimas, tudo isso me aguardava no próximo mês. Seria um tornado de sentimentos que me devastaria por dentro. Mal sabia eu o que me aguardava.